Isabella Luiz,

O bom filho a casa torna

Celina

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Perco o sono e decido esperar pelas cinco horas. Estou deitada na cama de meu antigo quarto. O silêncio me assola e questiona quando escreverei algo, talvez uma poesia. Faz tempo desde a última vez, mas não estremeço. Está tudo bem. Levanto para beber um copo de água e na metade do caminho percebo que estou andando na ponta dos pés. Meus pais dormem profundamente em seu quarto. Sou visita, mas o corpo se move naturalmente como se escutasse algo que não consigo ouvir, uma canção de ninar outra vida. Ainda temo coisas que não fazem sentido. Entendo, aceito, começo a percorrer a outra metade levantando a bainha do pijama para não tropeçar e fazer barulho. Sorrio no escuro. Não bato em lugar algum, a geografia ainda é a mesma. Lembro de uma brincadeira que fazia há muitos anos quando não conseguia dormir e perambulava pela casa. Fecho os olhos e tento seguir o trajeto às cegas testando os sentidos, vibrando com o perigo de que meu pai levante e me dê uma de suas broncas por me descobrir acordada. Pé ante pé, me movo um pouco temerosa. A casa parece maior apesar das pernas saberem exatamente o tamanho preciso de cada passada sem encostar em nenhum dos vários móveis que mainha coleciona. Chego ao bebedouro, encho um copo e volto para o quarto com minha medalha de ouro pendurada no pescoço.

Meu avô por parte de pai fumava. Sentava numa das belíssimas cadeiras de madeira do terraço, dobrava as pernas, acendia um cigarro e ficava em silêncio. Eu o assisti muitas vezes, mais do que lembro agora. Quando painho ia nos buscar às vezes avistava a mesma cena. Nada falava, mas quando subíamos no carro íamos todo o percurso escutando que fumar fazia mal à saúde. Em uma das voltas alguma de minhas irmãs perguntou o que de tão mal havia naquilo. “Quem fuma morre cedo, meninas”. Eu nada sabia sobre a morte além do que lia nos livros de biologia sobre o ciclo da vida, pela descrição de outros. Mas no dia seguinte, assim que abrimos a porta da antiga casa da Padre Capistrano, corri em disparada ao primeiro quarto e encontrei vovô pegando algo da estante. Me agarrei em suas calças e antes que pudesse fazer algo, puxei a carteira de cigarro de seu bolso e disparei mais uma vez. Ele corria atrás de mim gritando meu nome. “Vovô, você sabia que o cigarro mata as pessoas cedo?”, repetia rindo. Me tranquei no banheiro, abri a bacia e joguei o pacotinho ali. Dei descarga, mas ele não descia. Meu pai e meus avós batiam na porta pedindo para que abrisse. Quando finalmente parei de tremer do medo de levar bronca, consegui girar o trinco e olhei pra vovô acreditando que me odiaria para sempre. Mas ele olhou pro vaso e em seguida pra mim e começou a rir.

Vovô morreu cedo demais. Em seus últimos dias improvisaram uma UTI no primeiro quarto. Dias antes de seu falecimento pedi para que me deixassem vê-lo. Levei a bíblia que ganhei de aniversário e li alguma passagem pra ele. Não mexia nada além dos olhos. Não consegui reconhecer aquela pessoa que estava na cama, mas dei um cheiro em sua mão e disse que Jesus ia curar tudo. Meus pais só falaram de sua morte dias depois de seu enterro. Aquilo para o meu coração foi uma traição. Chorei de forma inconsolável, mas só vim entender o que era a morte e chorar verdadeiramente por ela quando percebi que jamais o veria novamente sentado em sua cadeira lendo o jornal em câmera lenta, bebericando o café, batendo as cinzas do cigarro que caía sem que percebesse em sua calça. Morrer é amar sinceramente uma leitura escrita por alguém em sua cabeça e um dia chegar ao fim de seu livro, fechá-lo e chorar sentada no chão do quarto por saber que não haverá uma palavra sequer depois daquilo. Voltar a lê-lo várias vezes num dia e com o passar do tempo, anos mais tarde, uma vez por mês ou duas. Até que aquele sentimento se transforme em uma saudade menos amarga. E em algum dia estar em uma condução indo para qualquer lugar, avistar algo familiar e recordar algo como a passagem de um capítulo que antes você sabia decorado, mas que agora precisa fazer um pouco de esforço para lembrar com clareza. As palavras continuam ali, resistindo a tudo.

A morte é ficção para quem revive alguém como um pensamento.

Fiz três testes de gravidez nesses últimos meses. Todos negativos. A menstruação continua em dia, mas sinto um movimento estranho em meu ventre. Apalpo a barriga para sentir. Algo pulsa. A ideia de engravidar me dá nos nervos não por ter aversão à maternidade, mas por temer ter um filho parecido comigo e pensar que talvez um dia ele me odeie assim como me odeio. Faria de tudo para tentar ser uma pessoa calma, contida, assertiva, equilibrada. Viraria outra se possível, mas sei que é uma ideia impossível. Por isso prefiro que meu filho exista somente enquanto conto uma história. Falo sobre a infância em Brejo do Cruz, em Campo Grande, dos banhos de bica, das pescarias no açude depois de sangrar, das minhas carreiras em ruas de barro e areia, de minhas irmãs. Faria como meu pai que contava uma história que nunca acabava para suas pequenas antes de dormir.

“Relaxe as pernas, pare de balançá-las. Feche os olhos para imaginar, meu filho, durma para poder sonhar”.

Olá, meu nome é Isabella. Desejo vir um pouco mais aqui e fazer os outros sonharem enquanto eu perco o sono e faço disso uma desculpa para escrever. Espero que goste do primeiro texto do ano.

Um abraço.

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Celina

Escritora Recifense, Editora da Revista Fale Com Elas no Medium Brasil. Também escrevo poesia e registro fotografias aqui. Contato: isabella-costa@outlook.com