Imagem: Isabella Luiz

Como entreter naufrágios

Cartas para Edna

Celina
4 min readMar 11, 2021

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Essa madrugada me veio na cabeça a imagem de andar de moto com um amigo pela zona sul da cidade. Renato amava a minha irmã e me amava, nessa ordem. Mas escrevia somente para mim. Achava bonito, agradecia com um sorriso, mas o coração não “sofregava” uma única vez sequer. Lembrei deste homem hoje, não sei por qual motivo. Faleceu há alguns anos. Na época, criei uma fantasia de que viajou para outra cidade e não nos falávamos por conta dos desencontros da vida. Era irreal imaginá-lo morto. Disseram o mesmo no dia do enterro, que nada daquilo fazia sentido. Edna, creio que recordar é como ressuscitar algo, seja um tempo passado, uma pessoa que mudou, uma casa que abrigava uma família, uma ideia, um sentimento. Tento buscar na mente de onde puxei essa lembrança.

Era metade de janeiro e eu gritava na garupa da moto debaixo da janela do apartamento de um ex-namorado em Boa Viagem. “Filho da puta, egoísta e mentiroso!”. Ainda lembro do rosto dele na janela, perplexo. Eu ria pela primeira vez em meses. Renato gargalhava a plenos pulmões junto comigo. Abracei sua cintura e passeamos pela orla conversando besteiras sobre a vida, sobre o futuro. Quis lembrar, disso tenho certeza. Tento buscar ainda mais fundo, mas as coisas me escapam. Há ainda uma névoa equivocada e impenetrável na cabeça, protegida por algum capricho de mim mesma. Cutuco a testa, franzo, mas não sai nada. A minha mente se esvazia e um ensurdecedor barulho de outras vozes, frases e conversas incompreensíveis, ecoa e me confunde. Sinto vontade de chorar a ponto de inundar o quarto, mas não sai uma lágrima sequer.

Faz quatro meses que acordo de madrugada com um terror. Há dias que grito, outros onde só levanto da cama assustada sem recordar meu nome e onde estou. São poucos segundos angustiantes até lembrar, “Isabella”. Repito para mim mesma “Isabella, Isabella, Isabella”, tantas vezes, até me acalmar e perceber que pareço estar chamando por outra pessoa. Quando era criança tinha a ridícula ideia de que ao dormir morreria e pela manhã seria outra pessoa parecida com a de antes. Então, por medo de sumir, me forçava a ficar desperta, inquieta e atenta. Passava dias assim, até ser vencida pelo cansaço, pelo descuido. Sobre esse hábito e suas histórias, ainda desejo lhe escrever de uma forma mais organizada. Há muitas coisas que gostaria de fazer de maneira mais caprichosa e demorada. Escrever é uma delas.

Edna, às vezes tenho a sensação de que alguém tenta me acordar durante o sono da madrugada, mas ainda não compreendo o motivo. Tento recobrar o sonho antes de despertar, mas não consigo, depois esqueço de tentar. Mais tarde esqueço o motivo pelo qual tentei recordar, que levantei em pânico como se estivesse me afogando, sem ar algum. Venho lembrar vagamente do pavor quando passa da meia-noite. E as memórias das minhas meninas despertas fazem o corpo agir no piloto automático, dispersando o sono com mil e um pensamentos, enganando o meu sultão. É desta forma que escrevo agora às três e pouca, contando mais uma história para não ser morta.

Não me entenda mal, por favor, não é da morte que tenho medo, mas sim de desaparecer, de esquecer tudo que coletei nesses anos, de cada expressão dos rostos das pessoas que amei e amo; de frases que li em alguns livros e tocaram meu coração; da melodia de uma canção de Chico que tentei decorar à tarde; da risada estridente de minha avó na cadeira de balanço na casa da Padre Capistrano; da letra de Celina que descobri nas contracapas dos livros de Machado de Assis; do reflexo do rosto de vovô Viana no retrovisor do Corsel, com seu ray ban verde escuro; da infância de minhas irmãs em São Lourenço da Mata; do rosto jovem de meus pais aos trinta e tantos, sentados na mesa de casa num domingo à tarde; da primeira vez que vi Pituca parir e de nomear os oito filhotinhos que nasceram, depois enterrar dois que morreram no quintal de casa; da primeira vez que me tocaram com meu consentimento; Edna, tive medo de esquecer Renato e sua moto preta, tentando me ensinar a dirigir no estacionamento do Shopping Recife às dez e pouca da noite. Até hoje não sei de onde ele tirou a ideia, talvez tenha sido minha. No fim ele ria de nervoso segurando a moto para que eu descesse. “Pelo amor de Deus, Isabella, você é terrível, eu te amo”. Hoje ele é casado, tem um filhinho de quatro anos, descobri em um post no Instagram. Tem a mesma cara do pai, idêntica a foto que vi no rack da sala da casa de sua mãe anos atrás no Poço da Panela.

A vida sempre tarda, Edna, mesmo quando acaba mais cedo do que se gostaria.

Olá, pessoal. Pra quem me acompanha por aqui durante esses cinco anos, meu muito obrigada. Faz um tempo desde nosso último encontro. Tenho diminuído muito o ritmo de postagem por conta de outros trabalhos e responsabilidades. Essa história é um pedacinho de um projeto chamado Cartas para Edna, que dividi em duas partes. A primeira se chama Como entreter naufrágios. Escrevi de uma vez só, como sempre faço. Paciência.

Espero que seja uma boa leitura.

Um abraço.

Celina,

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Celina

Escritora Recifense, Editora da Revista Fale Com Elas no Medium Brasil. Também escrevo poesia e registro fotografias aqui. Contato: isabella-costa@outlook.com